No dia 24 de outubro Roger Waters iniciou a etapa sul americana de sua turnê chamada This Is Not a Drill. Em tese esta é sua última turnê, muito embora outros artistas tenham feitos “últimas turnês” e depois retornado como se nada tivesse acontecido, porém, vamos partir da premissa que esta é a última vez que veremos este senhor de setenta e muitos anos fazendo sua digressão pelo mundo. Sob esse prisma podemos analisar este show como um misto de sentimentos tais como nostalgia, inconformidade, desespero e um fiapo de esperança.
Já antes do inicio do show Roger
projetou um aviso em letras garrafais em inglês, português e espanhol: “se você
é um desses tipos que amam o Pink Floyd, mas não suportam as posições políticas
de Roger Waters, você pode ir embora pro bar agora”. Sim, todo show de
Roger Waters é essencialmente político e sim, para o ódio de direitistas, conservadores e sionistas o músico irá utilizar os clássicos do Pink Floyd para atacar o governo dos EUA, para defender os direitos de pessoas trans e denunciar o genocídio na Palestina.
Musicalmente falando Waters entrega um show muito similar ao que ele já vem fazendo desde que saiu de sua banda mais famosa uma mistura de músicas autorais e músicas do Pink Floyd, algumas relidas outras exatamente nos mesmos arranjos. Mas aqui tivemos algumas novidades. O show abriu com Confortably Numb, um clássico do Floyd geralmente guardado pros momentos mais apoteóticos, mas aqui ela aparece numa versão sombria e lenta, totalmente cantada por Roger Waters (para aqueles que não conhecem, essa música é um dueto com David Gilmour) e sem os clássicos solos de guitarra de Gilmour. Não dá pra deixar passar despercebido o fato da relação entre o guitarrista do Floyd e Waters ter azedado mais que leite velho nos últimos anos, com Gilmour e sua esposa inclusive chamando publicamente Waters de antissemita por suas posições contra Israel. Os solos de David Gilmour em Confortably Numb são uma das marcas mais reconhecidas do Pink Floyd, achei ousado e até um pouco afrontoso Waters retirar isso da música, mas por incrível que pareça, no contexto do show, isso funciona.
O que me traz a outro ponto. Ainda que se possa dizer que Waters vive de reproduzir em 80% de seus shows a
produção de sua antiga banda, nunca é uma coisa totalmente gratuita. É claro
que Waters sabe que ninguém iria num show em que ele não tocasse os clássicos
do Pink Floyd, mas sabendo disso, é legal ver como ele, a cada show, procura
sempre ressignificar essas canções para transmitir uma mensagem atual.
Se na turnê anterior (US+Them
Tour) o alvo era claramente o ex-presidente Donald Trump, nessa atual
todos os presidentes americanos, de Ronald Reagan até Joe Biden (incluso aí o
queridinho Obama), foram tratados como o que realmente são, criminosos de
guerra. Se a turnê anterior era um grito contra a ascensão do fascismo no
mundo, nesta é uma denúncia de como esse fascismo está imposto, como ele
desumaniza povos e minorias e consequentemente os extermina, bem como àqueles
que ousam denunciar seus crimes. Nesse ponto do show são lembrados os diversos
assassinatos de negros, árabes, perseguições a jornalistas e políticos (o assassinato de
Mariele Franco foi lembrado nesse ponto, bem como o aprisionamento de Julian
Assange).
Na sua parte nostálgica, o show
relembrou por meio das músicas do disco Wish You Where Here do membro que junto
com Waters sonhou o Pink Floyd, Syd Barret. Aqui cabe um adendo pra quem
não conhece a história: Syd Barret foi a principal força criativa do Pink Floyd
desde sua fundação até a gravação do primeiro disco, após isso Barret sofreu
uma série de problemas relacionados ao uso excessivo de drogas que basicamente
lhe destruíam fazendo com ele fosse expulso da banda em 1968. Ele nunca se
recuperou, viveu esquecido na sombra do sucesso da banda que fundou até sua
morte em 2008. Agora voltando ao show. Fotos antigas da banda foram projetadas
nos quatros telões gigantescos do show: os jovens Roger Waters, Syd Barret,
Richard Wright e Nick Manson, os quatro membros fundadores do Pink Floyd.
Novamente David Gilmour foi boicotado, apareceu em meros flashes de fotos do grupo onde não tinha
como escondê-lo, mas não tem como não notar o rancor de Waters com o ex
parceiro de banda. Acho triste essa briga de egos. Syd foi um marco na época
mais romântica do Pink Floyd, isso é fato, no seu início, no sonho de serem
astros de rock, mas é inegável que nos discos e musicas que tornaram o Pink
Floyd uma lenda do rock era a guitarra e voz de Gilmour que estava lá e é fato também que
sem ele o Floyd não teria nem metade do tamanho que tem hoje em dia.
O segundo ato do show foi
totalmente político, foram utilizadas músicas do The Wall, The Dark Side of The
Moon e The Final Cut para transmitir a mensagem antiguerra de Waters. Denúncia
ao genocídio na Palestina, a ameaça cada vez mais crescente de uma guerra
nuclear e um fio de esperança na resolução dos conflitos por meio do diálogo.
In the Flesh e Run Like Hell do disco The Wall foram tocadas em conjunto com
mensagens que denunciam a violência do fascismo. Já Money, do disco Dark Side, surge
como uma crítica à burguesia capitalista, Us and Them clama pelo fim do preconceito e da divisão entre as pessoas, o que leva diretamente à Any
Color You Like uma celebração da diversidade de culturas, gêneros e povos do
mundo, Brain Damage e Eclipse fecham, numa reunião apoteótica, todos esses conceitos unindo-os pelo
prisma e as coras do arco íris. A música fecha unindo todas as contradições da humanidade no verso "tudo sob o sol está em sintonia, mas o sol foi eclipsado pela lua".
Nessa segunda parte os arranjos do Pink Floyd foram tocados no original, incluindo com Waters dividindo os vocais com seu guitarrista Jonathan Wilson, que aliás tem um timbre bem similar as gravações originais de David Gilmour.
Após a apoteose que é Eclipse o
show tem um encerramento quase melancólico. A banda numa versão quase acústica
executa Two Suns In The Sunset, música de encerramento do disco The Final Cut
onde um personagem voltando para casa ao entardecer com o sol se pondo atrás de
si se depara repentinamente com um segundo sol a sua frente e antes de morrer
no holocausto nuclear que começou ele reflete como, no fim, todos, amigos ou
inimigos, são iguais perante a morte. Mas há um fio de esperança com The Bar
uma balada que imagina um lugar onde as pessoas podem se encontrar e conversar
sem medo e assim resolver seus problemas. Por fim, Outside The Wall tocada
apenas com tambores, instrumentos de sopro e piano fecha o show. No disco
original (The Wall) essa música representa a possibilidade do personagem
estabelecer conexões reais com as pessoas a sua volta fora de sua bolha. No
show e para nós representa basicamente o mesmo.
Parabéns se você leu até aqui e
para encerrar esse texto eu vou dizer que eu amei esse show e que eu amo esse
artista, mesmo com seus vários defeitos (Roger Waters tem um sério problema de
EGO inflado, messianismo ou o que for) e suas inúmeras contradições. Mas isso
só o torna um ser humano como todos nós. Acho admirável como Waters se posiciona muito claramente, sem meias palavras, sem tergiversações
sobre aquilo que acredita. This Is Not a Drill denunciou claramente o genocídio
na Palestina, clamou pelos direitos dos povos indígenas, dos negros, das
pessoas trans, dos direitos reprodutivos (sim, ele abertamente defende o direito ao aborto). Chamou os presidentes americanos de criminosos de guerra, chamou
Zelensky de irrelevante, homenageou Julian Assange e Marielle Franco, criticou em letras
garrafais o Capitalismo, tudo isso usando as músicas do Pink Floyd. E o que eu
mais adoro nele é que ele faz isso de uma forma que não dá pra disfarçar, não
são mensagens sutis, subliminares ou diluidas em esoterismos, o posicionamento político
dele está em letras garrafais no seus telões, sendo impossível você assistir o
show e ignorar: ou você vibra e concorda ou você se treme de raiva por
discordar.
Roger é um artista que irá marcar
sua presença na história da música pop, para o bem e para o mal, se esta for
realmente sua última turnê eu desejo fortemente que para as gerações futuras
surja um artista com a mesma fibra, ousadia e coragem de defender o que
acredita e que este hipotético artista defenda o que é o correto: no fim, todos
somos feitos da mesma matéria, por que não podemos todos ser felizes então?