quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Isso não é um treinamento


No dia 24 de outubro Roger Waters iniciou a etapa sul americana de sua turnê chamada This Is Not a Drill. Em tese esta é sua última turnê, muito embora outros artistas tenham feitos “últimas turnês” e depois retornado como se nada tivesse acontecido, porém, vamos partir da premissa que esta é a última vez que veremos este senhor de setenta e muitos anos fazendo sua digressão pelo mundo. Sob esse prisma podemos analisar este show como um misto de sentimentos tais como nostalgia, inconformidade, desespero e um fiapo de esperança.

Já antes do inicio do show Roger projetou um aviso em letras garrafais em inglês, português e espanhol: “se você é um desses tipos que amam o Pink Floyd, mas não suportam as posições políticas de Roger Waters, você pode ir embora pro bar agora”. Sim, todo show de Roger Waters é essencialmente político e sim, para o ódio de direitistas, conservadores e sionistas o músico irá utilizar os clássicos do Pink Floyd para atacar o governo dos EUA, para defender os direitos de pessoas trans e denunciar o genocídio na Palestina.

Musicalmente falando Waters entrega um show muito similar ao que ele já vem fazendo desde que saiu de sua banda mais famosa uma mistura de músicas autorais e músicas do Pink Floyd, algumas relidas outras exatamente nos mesmos arranjos. Mas aqui tivemos algumas novidades. O show abriu com Confortably Numb, um clássico do Floyd geralmente guardado pros momentos mais apoteóticos, mas aqui ela aparece numa versão sombria e lenta, totalmente cantada por Roger Waters (para aqueles que não conhecem, essa música é um dueto com David Gilmour) e sem os clássicos solos de guitarra de Gilmour. Não dá pra deixar passar despercebido o fato da relação entre o guitarrista do Floyd e Waters ter azedado mais que leite velho nos últimos anos, com Gilmour e sua esposa inclusive chamando publicamente Waters de antissemita por suas posições contra Israel. Os solos de David Gilmour em Confortably Numb são uma das marcas mais reconhecidas do Pink Floyd, achei ousado e até um pouco afrontoso Waters retirar isso da música, mas por incrível que pareça, no contexto do show, isso funciona.

O que me traz a outro ponto. Ainda que se possa dizer que Waters vive de reproduzir em 80% de seus shows a produção de sua antiga banda, nunca é uma coisa totalmente gratuita. É claro que Waters sabe que ninguém iria num show em que ele não tocasse os clássicos do Pink Floyd, mas sabendo disso, é legal ver como ele, a cada show, procura sempre ressignificar essas canções para transmitir uma mensagem atual.

Se na turnê anterior (US+Them Tour) o alvo era claramente o ex-presidente Donald Trump, nessa atual todos os presidentes americanos, de Ronald Reagan até Joe Biden (incluso aí o queridinho Obama), foram tratados como o que realmente são, criminosos de guerra. Se a turnê anterior era um grito contra a ascensão do fascismo no mundo, nesta é uma denúncia de como esse fascismo está imposto, como ele desumaniza povos e minorias e consequentemente os extermina, bem como àqueles que ousam denunciar seus crimes. Nesse ponto do show são lembrados os diversos assassinatos de negros, árabes, perseguições a jornalistas e políticos (o assassinato de Mariele Franco foi lembrado nesse ponto, bem como o aprisionamento de Julian Assange).

Na sua parte nostálgica, o show relembrou por meio das músicas do disco Wish You Where Here do membro que junto com Waters sonhou o Pink Floyd, Syd Barret. Aqui cabe um adendo pra quem não conhece a história: Syd Barret foi a principal força criativa do Pink Floyd desde sua fundação até a gravação do primeiro disco, após isso Barret sofreu uma série de problemas relacionados ao uso excessivo de drogas que basicamente lhe destruíam fazendo com ele fosse expulso da banda em 1968. Ele nunca se recuperou, viveu esquecido na sombra do sucesso da banda que fundou até sua morte em 2008. Agora voltando ao show. Fotos antigas da banda foram projetadas nos quatros telões gigantescos do show: os jovens Roger Waters, Syd Barret, Richard Wright e Nick Manson, os quatro membros fundadores do Pink Floyd. Novamente David Gilmour foi boicotado, apareceu em meros flashes de fotos do grupo onde não tinha como escondê-lo, mas não tem como não notar o rancor de Waters com o ex parceiro de banda. Acho triste essa briga de egos. Syd foi um marco na época mais romântica do Pink Floyd, isso é fato, no seu início, no sonho de serem astros de rock, mas é inegável que nos discos e musicas que tornaram o Pink Floyd uma lenda do rock era a guitarra e voz de Gilmour que estava lá e é fato também que sem ele o Floyd não teria nem metade do tamanho que tem hoje em dia.

O segundo ato do show foi totalmente político, foram utilizadas músicas do The Wall, The Dark Side of The Moon e The Final Cut para transmitir a mensagem antiguerra de Waters. Denúncia ao genocídio na Palestina, a ameaça cada vez mais crescente de uma guerra nuclear e um fio de esperança na resolução dos conflitos por meio do diálogo. In the Flesh e Run Like Hell do disco The Wall foram tocadas em conjunto com mensagens que denunciam a violência do fascismo. Já Money, do disco Dark Side, surge como uma crítica à burguesia capitalista, Us and Them clama pelo fim do preconceito e da divisão entre as pessoas, o que leva diretamente à Any Color You Like uma celebração da diversidade de culturas, gêneros e povos do mundo, Brain Damage e Eclipse fecham, numa reunião apoteótica, todos esses conceitos unindo-os pelo prisma e as coras do arco íris. A música fecha unindo todas as contradições da humanidade no verso "tudo sob o sol está em sintonia, mas o sol foi eclipsado pela lua". 

Nessa segunda parte os arranjos do Pink Floyd foram tocados no original, incluindo com Waters dividindo os vocais com seu guitarrista Jonathan Wilson, que aliás tem um timbre bem similar as gravações originais de David Gilmour.

Após a apoteose que é Eclipse o show tem um encerramento quase melancólico. A banda numa versão quase acústica executa Two Suns In The Sunset, música de encerramento do disco The Final Cut onde um personagem voltando para casa ao entardecer com o sol se pondo atrás de si se depara repentinamente com um segundo sol a sua frente e antes de morrer no holocausto nuclear que começou ele reflete como, no fim, todos, amigos ou inimigos, são iguais perante a morte. Mas há um fio de esperança com The Bar uma balada que imagina um lugar onde as pessoas podem se encontrar e conversar sem medo e assim resolver seus problemas. Por fim, Outside The Wall tocada apenas com tambores, instrumentos de sopro e piano fecha o show. No disco original (The Wall) essa música representa a possibilidade do personagem estabelecer conexões reais com as pessoas a sua volta fora de sua bolha. No show e para nós representa basicamente o mesmo.

Parabéns se você leu até aqui e para encerrar esse texto eu vou dizer que eu amei esse show e que eu amo esse artista, mesmo com seus vários defeitos (Roger Waters tem um sério problema de EGO inflado, messianismo ou o que for) e suas inúmeras contradições. Mas isso só o torna um ser humano como todos nós. Acho admirável como Waters se posiciona muito claramente, sem meias palavras, sem tergiversações sobre aquilo que acredita. This Is Not a Drill denunciou claramente o genocídio na Palestina, clamou pelos direitos dos povos indígenas, dos negros, das pessoas trans, dos direitos reprodutivos (sim, ele abertamente defende o direito ao aborto). Chamou os presidentes americanos de criminosos de guerra, chamou Zelensky de irrelevante, homenageou Julian Assange e Marielle Franco, criticou em letras garrafais o Capitalismo, tudo isso usando as músicas do Pink Floyd. E o que eu mais adoro nele é que ele faz isso de uma forma que não dá pra disfarçar, não são mensagens sutis, subliminares ou diluidas em esoterismos, o posicionamento político dele está em letras garrafais no seus telões, sendo impossível você assistir o show e ignorar: ou você vibra e concorda ou você se treme de raiva por discordar.

Roger é um artista que irá marcar sua presença na história da música pop, para o bem e para o mal, se esta for realmente sua última turnê eu desejo fortemente que para as gerações futuras surja um artista com a mesma fibra, ousadia e coragem de defender o que acredita e que este hipotético artista defenda o que é o correto: no fim, todos somos feitos da mesma matéria, por que não podemos todos ser felizes então?



sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Jordan mechendo na colméia.



Candyman é meu filme de terror favorito. Uma mistura de lenda urbana, com slasher e suspense psicológico com uma pitada de critica social.Candyman é um ser poder ser invocado ao se dizer seu nome cinco vezes em frente ao espelho, então ele aparece e te mata. E por que alguém faria a estupidez de invocar a criatura? Bem, provavelmente por aquele comichão que dá na pessoa, uma disputa entre incredulidade racional e medo primitivo.

Mas o filme de 1992 é muito mais que jovens bobos invocando a fera. Ele possui uma dose de comentário social ao situar Candyman como objeto de um quase culto por parte de uma comunidade carente e marginalizada em Cabrini Green, Chicago. Comunidade esta que existe na vida real e por muitos anos foi foco de vandalismo e violência na cidade.

Cabrini Green é habitada majoritariamente por negros e o próprio Candyman, descobre-se é o espírito de um escravo cruelmente assassinado que volta a vida devido ao culto que se instaura em torno da sua figura. E quando este culto é ameaçado por uma intelectual branca que vai a comunidade desconstruir seu mito para uma tese qualquer da faculdade, Candyman precisa manter vivo seu culto.

O filme bebe muito da fonte original, um conto chamado O Proibido de Clive Barker. Aqui cabe uma observação, eu gosto muito de Stephen King, mas pra mim ele nunca escreveu histórias tão fortes e orignais quando Clive Barker, que pra mim é um verdade mestre do horror. Você, se assiste filmes de terror provavelmente já viu algum filme baseado na obra dele sem saber. Provavelmente foi Hellraiser.

Enfim, Jordan Peele vem produzindo um remake dessa obra, essa coisinha aí no trailer. Confesso que estou meio dividido. Primeiro Peele não é o diretor dessa vez e ele fez duas obras excelentes no gênero. Segundo o trailer mostra demais o quesito, pessoas estúpidas repetindo Candyman no espelho o que me dá medo de o filme virar um slasher sangrento e nada mais. Porém, o filme original tem farto material para Peele fazer mais um excelente filme na linha de Corra! e Nós, a crítica social, principalmente no quesito do racismo à comunidades negras.

O jeito é aguardar e confiar.

Ps. depois vou escrever um texto só sobre esse gênio do horror Clive Barker. 


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Duna

O site cinema com rapadura divulga hoje a notícia de que Josh Brolin está escalado para o novo filme de Duna dirigido por Denis Villeneuve. Não posso deixar de anotar que fiquei bastante emocionado com a escalação que li na notícia. Além de Brolin também estão lá Oscar Isaac que fez uns trabalhos sensacionais como Ex Machina, tá lá também Zendaya do filme do Homem Aranha, o veterano e excelente ator Stellan Skarsgard que tem tanto filme legal que dá preguiça de mencionar, mas vamos lá Ninfomaníaca, Os Homens que Não Amavam as Mulheres e tantos outros.

Duna é meu livro favorito. Um clássico da ficção científica, mas uma obra atemporal que trata de política, religião, poder, fanatismo e escassez. Uma visão de futuro pessimista, até mais pessimista que Blade Runner eu diria, uma vez que nem mesmo as benesses da tecnologia são encontradas. Um futuro quase medieval onde as grandes massas humanas são subjugadas pela ignorância e o medo.

Uma obra difícil de adaptar no cinema. Mas eu acredito em você Villeneuve.


https://cinemacomrapadura.com.br/noticias/533010/duna-josh-brolin-e-a-mais-nova-adicao-ao-elenco-da-adaptacao-de-denis-villeneuve/?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter

domingo, 10 de fevereiro de 2019

10.02.2019

Meu blog tá aqui acumulando poeira. Em parte eu culpo o fato de que eu estava tentando levar ele a sério, logo escrever coisas realmente interessante. Mas ninguém lê blogs hoje em dia. E pra falar irrelevância sempre tem o Twitter.

Volto aqui pra fazer algumas anotações acerca do ano. Primeira, não levar esse espaço tão a sério. Escrever coisas mais leves. Nada de resenhas. Só anotações esparsas mesmo.

A segunda anotação de hoje é que me lembra que ainda não escrevi nada sobre meu novo disco favorito Feral Roots da banda americana Rival Sons. Essa banda, creio eu e mais alguns críticos musicais, é o mais perto que nossa geração vai ver de um Led Zeppelin e esse último disco dos caras tá simplesmente fenomenal se alguma outra banda vai superar é algo que só o decorrer do ano vai mostrar.

Por ora é isso. Escute Feral Roots, possivelmente o melhor disco de rock deste ano. Não que reste muita gente que ligue para rock'n roll ou blogs.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

PREQUELLE - Ghost se entrega ao pop e lança seu melhor disco até agora

Não é de hoje que tenho achado o Ghost um dos melhores acontecimentos no rock mundial. A banda surgiu ao mundo macabra, envolta em panos pretos, corpse paint, simbologia satânica e letras sinistras, mas quando o som começava a tocar, que surpresa, não era o peso e a brutalidade que se esperava, ele era suave, grudento, retrô, pop. Essa dicotomia entre visual e som marcou o Ghost no início de sua carreira, conquistou muitos e afastou outros tantos. As celebridades do rock pareceram abraçar a causa da banda, assim como o mundo da música.

Toda a aura fúnebre emanada por Papa Emeritus e seu séquito misterioso de músicos que jamais revelavam suas identidades, os Nameless Ghouls, não demorou muito pra desvanecer. O satanismo do Ghost era uma piada e assim a banda o tratava, assim a aura de mistério foi dando lugar a um humor despojado. Papa Emeritus Segundo começou a aparecer sem maquiagem em Las Vegas, acompanhado de modelos e lançando sua própria linha de brinquedos sexuais. Papa Emeritus Terceiro abandou a batina e mitra por um terno mais leve e uma basta peruca, começando a se apresentar menos como  membro de um clero satânico e mais como um pregador evangélico. Agora, temos Cardinal Cópia, não é um papa, é aspirante, chega aí jovial, vestido numa jaquetinha de couro reluzente e gingado sexy, promete revolucionar.

A banda parece ter uma visão musical muito bem definida, no primeiro disco pesou no hard rock setentista e trouxe a memória nomes como Blue Öyster Cult e Mercyful Fate, no segundo focou na produção, trazendo corais, orquestrações e um foco no rock progressivo, o terceiro disco focou no peso e agora, chegando ao seu quarto disco, a banda abraça uma vertente que vinha dando sinais desde seu primeiro disco, o pop. 

Prequelle ainda é um disco de rock, talvez até mesmo tenha algo de metal, mas é inegavelmente um disco pop, músicas como "Rats" e "Dance Macabre" estão aí pra comprovar, ambas são os carros chefes do disco, feitas pra ficarem grudadas na sua mente, quer você goste delas ou não (eu adorei as duas aliás), sendo que a segunda tem um ritmo irresistivelmente dançante pra combinar com seu nome. O metal NWOBHM bem retrô dá as caras em "Faith" e num breve riff de guitarra de "Rats" também. "Pro Memória" cumpre a cota de baladas que misturam o macabro da letra com a beleza da música. "See The Light" é um canção pensada pra grandes platéias, inclusive com deixas para o público cantar junto.  "Witch Image" tem um refrão excelente, grudento (você vai se perceber querendo cantar junto), só tem um pouco de trabalho de se destacar dentre um desfile já tão bom de canções.

Dentre essa já respeitável playlist existem ainda duas pérolas. "Miasma" e "Helvetesfonster", duas tour de force instrumentais onde a banda dá vazão a todo seu potencial progressivo, mas sem exageros. A primeira, mais pesada, conta com um rock'n roll de primeira que evolui num crescendo e cumina num surpreendente solo de saxofone. A segunda, mais intimista, busca sua beleza na melodia e harmonização dos instrumentos elétricos com os acústicos.

"Life Eternal" é uma musica breve com vocais grandiosos, mas vai baixando o tom para fechar o disco com suavidade, daquelas canções que não deixam dúvidas que a viagem musical chegou ao fim, mas sempre com aquele gostinho de quero mais.

Acho que musicalmente a banda nunca esteve tão bem. NWOBHM, Prog Rock, Pop, percebe-se que é vasta a gama de influências donde a banda busca inspiração para suas canções. Cada vez mais determinada em se tornar um fenômeno pop, mas sustentado por ótimas composições. Prequelle demonstra que o Ghost veio aí pra ficar!
Caso você esteja se perguntando: onde diabos eu vi essa capa antes?
Ta aí

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Boarding House Reach de Jack White

Jack White não entra em estúdio pra fazer feio. Seu terceiro disco é fácil um dos melhores lançamentos de 2018. É um disco bem difícil de classificar já que ao que parece White usou todas as referências musicais que ele possui em sua composição. São treze canções que variam entre o hard rock, o blues, o noise, o psicodélico, o jazz, a poesia, enfim uma grande mistura que poderia soar insano, mas não soa, pelo contrário, é muito bom!

O disco começa pomposo com "Connected by Love" com andamento mais lento e corais gospel, fica ainda mais lento e mais pomposo com "Why Walk a Dog" e seus órgãos de igreja pra cair num groove dançante na animada "Corporation", onde Jack recita a letra e grita com a potência de uma sirene sobre uma base musical sólida e suingada. Destaque ainda para o poema recitado ao som de piano e violino em "Abulia and Akrasia" e a canção final "Humoresque" adaptação do músico erudito Antonín Dvorák.

Seria fútil tentar descrever todas as canções, já que a tônica do disco parece ser o bizarro, o próprio músico já avisou que seria assim. Uma olhada rápida na ficha técnica com mais de 24 músicos de estúdio e uma variedade enorme de instrumentos, e creia, todos eles com um momento de destaque no disco, já demonstra toda a variedade musical que o compositor tentou trazer para seu disco.

Jack White e suas guitarras são as estrelas do disco por óbvio, mas pra mim também merece destaque a excelente cozinha formado pelo baixo e bateria, juntos ambos trazem um groove contagiante que não deixa a peteca cair mesmo nos momentos mais bizarros do disco.

Certamente Boarding House Reach é o disco mais fora da curva da discografia de White e facilmente poderia ser classificado como uma ego-trip do compositor. O que se reforça pela declaração de que o compôs o disco de forma que o som saísse da forma mais parecida possível como soava em sua mente . Se assim for, é uma viagem em que embarquei com gosto. Só com uma ressalva para a arte de capa de extremo mal gosto, mas isso é secundário, afinal o que importa mesmo é a música.

Ouça no Spotify

sexta-feira, 30 de março de 2018

Spartacus (1960)

De todos os filmes que já vi de Stanley Kubrick, Spartacus é o que menos parece um Kubrick. Primeiro porque, na verdade, era o filme de Kirk Douglas, ator principal e produtor executivo, segundo porque começou dirigido por Anthony Mann, com quem Douglas brigou por diferenças artísticas na concepção do filme e só então chamou um ainda jovem Stanley Kubrick para a direção, que aliás também teve discussões com Douglas quanto ao direcionamento do filme, mas acabou tendo que se submeter ao ator, depois disso Kubrick teria tomado a resolução de somente fazer filmes em que ele tivesse amplo controle criativo.

Isso não tira o mérito do filme de ser uma verdadeira obra de arte, nem de seu diretor pelo brilhante trabalho. Um épico histórico com mais de três horas de duração, produção impecável e efeitos especiais decentes, principalmente considerando que foi feito quando nem se cogitava computação gráficas nos filmes.

O filme conta a história de Spartacus, nascido escravo é vendido para ser treinado como gladiador, na sua primeira luta até a morte é polpado por seu oponente Draba que é morto por sua insubordinação, tal piedade inflama Spartacus que começa uma rebelião de escravos em busca de liberdade que irá abalar os alicerces de Roma. Para além desse conto épico, também é um filme político ao explorar o jogo de poder no Senado Romano, principalmente entre o Senador Gracco e o General Crasso, oponentes políticos, o primeiro interessado em manter a República a qualquer custo ainda que tenha que tomar atitudes questionáveis, o segundo sonha com uma Roma purificada com ordem, fé aos deuses e livres de corrupção, para isso sonha com o poder concentrado na mão de um líder forte (ele mesmo claro). 

Um jogo político que pode ter muito a dizer ao nosso país. Numa das falas mais poderosas do filme o Senador Gracco, busca alertar o senado das intenções tirânicas de seu rival Crasso, quando um dos senadores argumenta que Crasso foi um dos poucos que jamais cedeu a corrupção ele responde: "Prefiro um pouco de corrupção republicana com a liberdade republicana do que tirania de uma ditadura e liberdade nenhuma". Ao fim, Crasso usará a rebelião dos escravos para incitar o terror em Roma e dessa forma se apresentar como o salvador ao concentrar sobre si todos os poderes dando o primeiro passo do viria a se tornar o império dos Césares. Caio Julio César que viria a se tornar o primeiro dessa linhagem aparece no filme como coadjuvante. 

Obviamente que Roma era um república só para os seus patrícios, para todos os demais era mera tirania, principalmente para os escravos. O filme busca mostrar como eles eram tratados como meros objetos de exploração cujas vidas estavam a disposição dos patrícios até mesmo para entretê-los onde entra as batalhas dos gladiadores. Após a rebelião os escravos são humanizados, passam a ter sonhos, aspirações por liberdade, a irmandade que estabelecem entre si é quase idílica, sem atritos, brigas ou traições. A essa sociedade comunitária é aposto os jogos de interesse político de Roma. 

Spartacus ganhou os Oscars por Direção de Arte, Fotografia e Figurino, merecidíssmos, fora a caracterização belíssimas dos personagens o filme nos brinda a todo momento com cenas de grande beleza, algumas verdadeiros quadros renascentistas em movimento. As cenas de batalhas são em escala épica, impressionantes mesmo hoje em dia.


E para quem é fã de Kubrick vai impressionar também o caráter emocional do filme. Para um diretor tão cerebral e pouco afeito a trabalhar as emoções humanas, pelo menos, as boas emoções humanas como amor, a fraternidade e o altruísmo, Spartacus é um oportunidade única para vermos um Kubrick mais emotivo. Provavelmente, muito disso teve a mão de Kirk Douglas interferindo na visão do diretor. Mas mesmo assim, são momentos belíssimos e comoventes, como a cena final (ALERTA SPOILER) quando vemos um Spartacus crucificado olhando pela primeira vez o rosto de seu filho.

Um grande filme (em todos os sentidos) que vale a pena ver. 

terça-feira, 20 de março de 2018

Maria Madalena

A iniciativa de filmar uma história de Cristo do ponto de vista de Maria Madalena basta, por si só, para ser polêmica. Afinal, o novo filme de Garth Davis (diretor de Lion) é uma história de Cristo, no fim das contas. O filme busca uma nova visão para uma das mais injustiçadas figuras bíblicas. Erroneamente tratada, durante séculos, como prostituta redimida por Cristo e constantemente confundida com a prostituta salva do apedrejamento por Jesus. Cena clássica que é sequer mencionada nesse filme. 

O diretor nos apresenta uma Maria Madalena de grande sensibilidade e empatia que se sente deslocada no papel que lhe é designado pela família, a obrigação de casar e ter filhos. Esse deslocamento faz sua família acreditar que a mesma esteja possuída por demônios o que os fazem chamar o curador que passava na região, Jesus. O encontro dos dois é o ponto culminante para que Maria decida deixar tudo para trás e seguir o Rabi. Em momento nenhum ela esclarece para alguém ou para si mesma o porque de seguir aquele homem, ela somente sabe que sua antiga vida não é mais o suficiente.

Filmes de Cristo optam geralmente por duas vias: a polêmica ou a fidelidade aos textos canônicos. Maria Madalena opta pelo caminho do meio. Evita polêmicas ao estabelecer um relacionamento essencialmente platônico entre Madalena e Jesus, ao estabelecer ela como uma figura frágil e ao mesmo tempo firme, mas jamais roubando o protagonismo do Mestre, humaniza a figura de Cristo, mas não nega ou sequer põe em dúvida sua divindade, nesses termos é um filme conservador. Por outro lado, é um filme que não se prende ao ar devocional e dogmático tradicional dessas narrativas. Os milagres são representador com menos solenidade, a clássica imposição das mãos, as frases de efeito, o clássico "tua fé te curou" são trocados pelo toque, o abraço, o olho no olho, o sorriso ou as lágrimas. Abundam os momentos contemplativos, as paisagens ermas e o silêncio, já as passagens bíblicas clássicas quando não desconsideradas são passadas brevemente quase com desleixo, a entrada em Jerusalem, a Ultima Ceia, até mesmo a crucificação são repassadas as pressas, mais para cumprir tabela do que para realmente preencher a história, provavelmente porque ao final do filme, fica claro que nada disso tem importância.

Talvez o ponto mais polêmico e melhor do filme seja o seu final. Já é clássica a narrativa de Maria como a primeira mulher a ver o Cristo Ressuscitado o filme a mostra como a única. E também a única a compreender a verdadeira mensagem do Mestre. É somente ela que vemos fazendo perguntas ao mestre, a única buscando-o em seus momentos de sofrimento silencioso, a única a realmente lhe fazer gestos de amor e misericórdia. Os homens, com destaque para Pedro e Judas, o vêem como um líder de uma revolução, cada um já fazendo sua própria imagem do Messias, mas nunca parando para ouví-lo. Eles vêem o Jesus que querem ver. Ao fim após a ressurreição Maria ainda tenta uma última vez explicar-lhes a mensagem de Cristo "O Reino do Céus está em nós", mas é rejeitada e quando Pedro lhe anuncia que eles irão continuar a espalhar a Mensagem, Maria retorque "A sua mensagem, não a Dele", na única grande cutucada que o diretor faz a toda a Igreja Cristã de base patriarcal.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Crítica: A Forma da Água

Chega certa época na carreira de um diretor que parece que ele se sente na obrigação de fazer um filme fofo. Foi assim com Scorcese quando filmou A Invenção de Hugo Cabret, Spielberg sentiu esse necessidade logo cedo com seu ET, fico imaginando quando essa necessidade imperativa de ser fofo no cinema vai acometer Tarantino, tamos aí no aguardo. 

De qualquer forma, essa é a vez de Guilhermo Del Toro, excelente diretor que já nos presenteou com o sensacional Labirinto do Fauno, nos divertiu com um pastiche de anime chamado Pacific Rim e vá lá, nos entendiou um pouco com Colina Escarlate. Agora ele chegou para encantar com um conto de fadas de época sobre a luta por um amor impossível. Todos os elementos estão lá, desde a ambientação de época, os anos 60 no caso, a trilha sonora, as referências a filmes clássicos, musicais antigos, de preferência, além dos personagens, todos essencialmente bons, mas vivendo a margem da sociedade que basicamente, os despreza.

Mas Del Toro é mais que isso e um filme seu não dificilmente se conteria apenas nesses elementos básicos. Elementos tais como a sexualidade. A nudez desponta em vários pontos da trama, assim como seus personagens não são apenas representações platônicas de sentimentos puros, mas são pessoas com seus desejos, não atoa sua personagem principal se masturba todo dia de manhã, seu melhor amigo, um artista gay chegando a terceira idade sente atração pelo vendedor de tortas. 

Outro elemento é a tensão crescente do filme, apesar de ser estruturado na forma de um conto de fadas o sentimento da ameaça é forte. A construção do vilão o Coronel Strickland, tem muito a ver com isso, pois o diretor se preocupa em apresentar as frustrações do personagem, por um lado humanizando-o, por outro tornando-o ainda mais ameaçador.

Somado a isso, ainda há alguns comentários a respeito de racismo, preconceito e claro a falta de empatia que nos faz ver o diferente sempre como algo monstruoso sem sequer tentarmos entendê-lo. Possivelmente essa é a grande metáfora do monstro, capturado na Amazônia onde era idolatrado pelos nativos é visto como um monstro pelo Coronel como uma aberração que deve ser eliminada o mais rápido possível. O filme claro vai demonstrar quem é o monstro real dessa história.

Guilhermo Del Toro fez um seus melhores filmes com esse A Forma da Água, um conto de fadas pra gente grande, um filme fofo, mas também com uma boa dose de violência gráfica, um filme sobre a força do amor, mas não dissociado de sensualidade. Se a Academia pretende premiar esse homem com um Oscar, com certeza chegou o momento. Tem minha torcida.

sábado, 20 de janeiro de 2018

Os 10 anos de Breaking Bad


Há dez anos atrás Heisenberg e Walter White entravam na cultura pop para marcar época. Para mim passou batido, primeiro porque há dez anos atrás eu nem era de assistir séries, também passou batido nos anos seguintes, só depois da série já ter se encerrado e por recomendação de um amigo é que fui encarar as cinco temporadas da história do professor de química com câncer que se transforma num  maligno traficante de drogas.

Muita gente considera, meu amigo inclusive, essa como a melhor série de todos os tempos. É interessante pensar o que faz dessa série tão impactante para os fãs. Certamente um desse elementos é atuação fenomenal de Brian Cranston como Walter White evoluindo de um pacato, medroso e fracassado professor química e lavador de carros para um cruel assassino, sangue frio e temido chefe de tráfico Heisenberg. E seguindo a fórmula de sucesso de Conan Doyle, o personagem principal precisa de seu parceiro, esse é Jesse Pinkerman, personagem do qual vamos sentir pena, raiva, ódio, empatia, enfim uma miríade de emoções que cercam o parceiro de Walter, drogado, decadente, vivendo numa espiral de fracassos e a cada temporada ele tenta se erguer só para cair ainda mais fundo no poço escuro que é sua vida.

O drama não poderia estar completo sem o perseguidor implacável e o drama familiar, temos ambos reunidos num dos mais carismáticos e divertidos personagens da série Hank Schrader, implacável e competentíssimo agente da DEA, a divisão de combate ao narcotráfico dos Estados Unidos, também o tiozão do churrasco em casa, sempre tirando sarro, bebendo cerveja e fazendo piadas. Completando o drama familiar temos Skyler, esposa de Walter e única que conhece a vida secreta do marido, divida entre proteger o marido em nome da família e combater sua crise de consciência pelos crimes de seu marido. É através dela que vemos o quanto a personalidade de Walter vai se degradando ao longo dos episódios.

Os vilões da trama merecem um parágrafo a parte. A cada temporada temos um verdadeiro show na parte vilanesca da história, exceto na quinta. Tuco Salamanca, traficante mexicano, psicopata e a todo momento chapado, um dos personagens mais assustadores e loucos de todos. Seu exato oposto Gus Fringe, lidera a maior rede trafico dos Estados Unidos, sensacionalmente acobertados numa rede de Fast Foods chamada Los Pollos Hermanos, frio, calculista, sempre educado e elegante é um dos personagens favoritos da série, sua pose sempre ereta, seu vocabulário perfeito, seu sorriso elegante e olhos frios de assassino são uma imagens mais marcante da série, junto com a careca e cavanhaque de Walter White. Na lista ainda temos Mike, faz tudo de Gus, calado, mas mortal, frio e ao mesmo tempo vovô babão com sua netinha e por fim o resolve tudo Saul Goodman, advogado pilantra e fanfarrão, tão marcante que ganhou sua própria série.

A forma com que os criadores desenvolveram a série também é marcante. Walter é um gênio da química, mas sua caminhada para o mundo do crime não é fácil, pelo contrário é cheia de trapalhadas, algumas muito engraçadas, outras com consequências mais graves. Dramas familiares vão surgindo, bem como situações de violência extrema apresentadas hora de forma dramática, hora como humor negro, as decisões dos personagens hora te surpreendem, hora te enchem de raiva. Vários dos arcos têm finais frustantes, outros são sensacionais, de certa forma é uma série imprevisível. Situações absurdas também surgem para contrabalancear o hiper-realismo da série.

Também é importante frisar que o arco de evolução do personagem principal não é romantizado, somos colocados frente a um verdadeiro antiherói, em sua escalada no mundo do crime Walter White tomará decisões revoltantes, logo ele se torna de fato um vilão, ainda que os autores tenham minimizado isso com um final redentor, para mim infelizmente. 

Enfim, um dos grandes méritos de Breaking Bad é conseguir criar um elo verdadeiro entre o espectador e seus personagens, cada um deles nos parece real, em suas qualidades e defeitos. Some a isso um enredo esperto, falas marcantes e imagens icônicas e estão aí os ingredientes de uma série que gostando ou não ficará marcada na sua mente.